Barão da Mata - Verdades e Diversidades

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sábado, 6 de junho de 2009

O "SUICIDA"

Zeca sentou-se à mesa da quitinete pobre e quase sem mobília, a expressão imutável como a de um autômato, escreveu um bilhete:“Adeus, perversa. O remorso te acompanhará até o fim dos teus dias.”
Andou em passos lentos na direção da janela de oitavo andar, sentou-se no parapeito, uma das pernas para o lado de fora, e ficou a buscar em si coragem para atirar-se.
Em pouco tempo a rua se encheu de curiosos, e, como vindo do nada, um homem alto e forte arrombou a porta com um pontapé e adentrou a quitinete.
--Se você se aproximar, eu me jogo! – ameaçou Zeca.
O homem o conteve com um gesto de mão, mantendo-se afastado:
--Calma! Não faz isso. Não vou chegar perto. –Explicou: --Eu sou repórter e quero apenas registrar o fato. Só quero te pedir que não se jogue agora.
--Você tá querendo me ludibriar. – acusou Zeca .
--Não tô não! –continuou o outro a contê-lo com um gesto de mão
– Eu juro que não. Só quero te pedir calma, que fique quieto e não se jogue agora. – tirou com cuidado e vagarosamente o celular do bolso: -- Vou só ligar pro cinegrafista e o fotógrafo, que tão lá embaixo.
Não precisou: os dois chegaram tão logo o repórter acabou de mencioná-los.
Zeca fez um gesto de que ia se jogar, o jornalista voltou a acalmá-lo:
--Não, por favor, são eles dois, mas não vão se aproximar.
O infortunado obedeceu, o repórter voltou a avisar:
--Me deixa só ligar prá redação, pra ver se consigo anunciantes, patrocinadores pro evento.
O fotógrafo fotografava, o cinegrafista filmava, o outro conversou rapidamente com alguém ao celular, voltou-se para o infeliz:-
-Vamos fazer o seguinte: você me dá uma entrevista antes de se atirar?
Zeca deu de ombros, o ar sempre tristonho:
--Por que não?
O telefone do jornalista tocou, este disse a alguém do outro lado:
--Ah, ótimo! Pode deixar que eu vou anunciar. – desligou, voltou-se novamente para Zeca: -- Pois bem, meu nome é Orlando Abutre, e o seu?
--José das Virgens.
--Muito bem, então vamos começar a entrevista.
Começar a entrevista àquela altura uma ova! Porque mais uma vez Orlando Abutre houve que pedir a Zeca para não cometer o ato fatídico, já que uma multidão de fotógrafos, cinegrafistas e entrevistadores invadiram o cômado, e iniciou-se um clima de balbúrdia:
--Epa! A matéria é minha, eu cheguei primeiro e vou noticiar em primeira mão.
--Primeira mão uma pinóia! Eu também tô nessa!
--Sai da frente, que a foto é minha!
--Uma merda que saio!
--Briguem à vontade, que eu é que noticio.
--Você que pensa.
--Sai daí!
--Não saio!
--Vocês também! Fora daqui!
--Fora daqui o cacete!
--Qual é a tua?!
--Qual é a de vocês?!
--Vão à merda vocês todos!
--Quer levar porrada?
--Não tô vendo homem.
Zeca soltou um berro:--Vamos organizar essa porcaria?!!
Os outros ficaram perplexos e calados, Orlando propôs:
--Cada um tira uma foto de cada vez, cada um faz uma pergunta de cada vez. Antes de ele se jogar, cada empresa jornalística chama mais um fotógrafo e um cinegrafista pra ficarem lá embaixo, filmando e tirando fotos da queda, enquanto aqui dentro cada um dá espaço pro outro filmar e fotografar de bom ângulo.Os outros concordaram, foi pedido a Zeca que aguardasse os profissionais extras, e ele aceitou.
A entrevista começou:
--Por que você deseja se matar?
--Porque a Gertrudes me deixou.
--Quem era a Gertrudes?
--Era minha mulher.
--E por que ela te deixou?
--Por causa do vizinho do 506.-
-Você tá muito triste com isso?
--Não...! –- ironizou Zeca – Vou pular de pura alegria.
Neste momento entrou no apertado cômado um político de oposição ao governo federal.
--Vejam, senhores espectadores – anunciou um dos repórteres --- acaba de chegar aqui o deputado Faustino Contrário, que pede calma ao José das Virgens e consegue se aproximar.
O deputado se vira para as câmeras e observa, apontando na direção de Zeca:
--É preciso que entendamos que esse homem que aí está, se neste momento quer-se atirar do oitavo andar, é pelo fato de ser mais uma vítima do caos social predominante neste país. Notem que é alguém sofrido, pobre e que é levado a esse ato extremo pela dificuldade de subsistir com dignidade dentro da política econômica do governo...
--Mas eu só vou me matar porque a Gertrudes me deixou. – interrompeu-o o abandonado.
--Mas se você fosse rico ela não te deixava – retrucou o político, insistindo em sua tese.Adentrou também subitamente um deputado do partido do governo, de nome Aldo Sá Fado.
--Ouvi, minha gente, o discurso demagógico e mentiroso do colega Faustino Contrário, e quero provar que esse homem é rico... mais que rico, milionário!--E por quê? – indagou Faustino, incrédulo.--Ora, francamente! – respondeu Sá Fado – Não sabe Vossa Excelência que o pouco com Deus é muito?
Entraram outros políticos fazendo campanha. Que confusão dos diabos!
--É para acabar com a injustiça social e com os suicídios que eu peço o seu voto.--Sou trabalho, luta, honestidade: vote em mim.
--Sou o defensor dos maridos traídos: preciso do seu voto.
Um outro candidato já até tentava convencer Zeca a suicidar-se após as eleições, porque lhe queria o voto, mas ele foi irredutível. Os telejornalistas seguiam na cobertura do iminente suicídio.
--Esse suicídio tem o patrocínio das “Casas Xondas” e do “Pranto Frio Bundão”.
--Atenção! Está aqui conosco o cantor e compositor Sumidinho, que veio prestar sua solidariedade ao nosso futuro suicida. Tudo bem, Sumidinho?
--Tudo bem. Tudo bem, minha gente?! Tudo bem, minhas fãs?! – e pediu licença a Zeca para acenar para um bando de mulheres que soltavam gritos histéricos lá embaixo.
A entrevista com o cantor continuou:
--Algum CD novo no mercado?
--Tenho sim. Aliás, CD não, um LP gravado em 1975, o meu trabalho mais recente, o que tem a canção romântica “Cueca Manchada de Amor”. Mas eu queria também divulgar uma composição que nem sequer foi gravada, porque foi feita pra esse pobre diabo que quer se atirar da janela, e eu quero apresentar esse trabalho em primeiríssima mão.
--Muito bem, -- dizia Orlando Abutre – pois então vamos a ele.
A um assovio de Sumidinho, a sua banda surge em cena com os instrumentos.A turba, lá embaixo, começa a se manifestar, e Orlando Abutre chama a atenção dos telespectadores:
--Veja só, minha gente, a solidariedade dos populares lá embaixo.
Enquanto a multidão grita:
--Pula! Pula! Pula! Pula! Pula!
A introdução da canção de Sumidinho, um "funk", e ele principia a cantar:
“Pula logo, sua besta,
que a gente quer te ver voar.
Pula logo, seu palhaço,
que a multidão quer te ver se arrebentar.
Pula logo, "indiota",
que nós quer se alegrar.
Pula logo, seu covarde,
Que nós quer se emocionar.
Pula logo, seu bundão:
Quero ver teus pedaços no chão.
Pula, fresco, se te manca,
Não faz de palhaço a televisão.”
E repetia toda a primeira estrofe, assim terminando.
Terminada a apresentação do cantor, os presentes àquele lugar vêem com estranheza no rosto de Zeca um sorriso e um ânimo até então por eles desconhecido.
--Gente, quanta solidariedade!... –- embevecia-se o coitado – Quanta honra! Quanto orgulho de mim!...Sorriu largamente e disse:--Não dá nem vontade de morrer...
Entreolharam-se os jornalistas, Sumidinho e os políticos, todos pegos por grande surpresa.
--Quer dizer -- considerava Orlando Abutre com os outros repórteres – que nós estamos transmitindo um suicídio que não vai acontecer? Transmitimos ao vivo e a cores o que não aconteceu?
--É verdade... –concordavam.
Seguiu Orlando:
--E os anunciantes, os patrocinadores? Patrocinaram um acontecimento que não aconteceu?
--É...
Faustino Contrário também deduziu:--Eu fiz campanha em cima de um fato que não foi fato.
--Eu também. – balançou a cabeça outro político, inconformado.
--E eu. – também um terceiro.
Tornou Orlando:-- Se o acontecimento não acontece, como vai ficar a credibilidade da emissora perante os patrocinadores? E perante os telespectadores, que vão ficar extremamente frustrados?
Lastimava-se também Sumidinho:--E eu? Como vou gravar uma música sobre um fato real que não se deu?
Zeca, alegre, risonho, decidia-se:
---É isso mesmo! Não vou mais me matar. – e foi até a janela, de onde voltou-se para a turba:
--Vão tirando o cavalinho da chuva! Não vou mais pular, seus comedores de carniça!
E a turba gritava "pula", e os repórteres, os políticos e o cantor se entreolhavam, compenetrados, silenciosos.Entreolhavam-se, não diziam palavra, pensavam, pensavam, pensavam...
Olharam-se mais firmemente, num estalo de decisão, e aproximaram-se da janela.--Vejam, espectadores, como ele se joga! – ainda anunciou Orlando Abutre.E ajudou os outros no empurrão a Zeca, que estatelou-se no chão para a felicidade de todos.

fim

1999

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